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A cultura e as línguas clássicas

Temas a tratar: o latim e o grego — seu estudo; a língua e a cultura; as origens da língua portuguesa; etimologias; a cultura clássica e a cultura portuguesa

A cultura e as línguas clássicas

Temas a tratar: o latim e o grego — seu estudo; a língua e a cultura; as origens da língua portuguesa; etimologias; a cultura clássica e a cultura portuguesa

VALORIZAR A MEMÓRIA

isa, 24.06.18

Memória: palavra muito “fora de moda” neste mundo tecnológico, ligada mais à máquina do que à pessoa, numa crença errónea de que não é preciso memorizar quando o computador memoriza tudo, quando na internet há toda a informação...

O texto que se apresenta foi publicado no Boletim de Estudos Clássicos, nº 24, em Dezembro de 1995. Muitos anos se passaram, mas poderia ter sido escrito hoje.

Pela sua actualidade, transcreve-se, com algumas supressões:

 

(Re)valorizar a Memória

Breve reflexão pedagógico-didáctica

 

Não vamos, de novo, discutir o problema da importância do latim e da cultura clássica num mundo virado para a tecnologia, que, no entanto, começa, lentamente, a valorizar as questões humanísticas, depois de ter concluído que não é possível a máquina substituir o homem, que uma "tecnologia desumanizada" levaria ao caos, ao desconforto moral, ao apagamento daquilo que é essencial a uma vida plenamente realizada: as emoções, os sentimentos, a relação humana. E é essa relação humana, valorizada na relação pedagógica, que a cultura greco-latina nos transmite.

Por isso, a educação e o ensino têm de valorizar as disciplinas humanísticas como complemento indispensável ao complexo aumento tecnológico e científico alcançado neste final de século e de milénio.

E é neste contexto que ganha grande acuidade a reflexão sobre as novas metodologias de ensino/aprendizagem, na necessidade de "competir" com o mundo da imagem, da informação rápida e imediata, do pré-fabricado, do produto já feito, sem a exigência de um profundo raciocínio, de uma complexa investigação.

É que não adianta o queixume, o lamento, se nada for feito para, remando um pouco contra a maré, levar o adolescente, o jovem, a reflectir sobre a língua, a procurar um enriquecimento cultural, especialmente na área da cultura clássica, que o tornará mais apto a enfrentar os novos desafios do futuro.

Ninguém pode negar o valor da cultura literária e linguística e, juntamente, o conhecimento do latim e da cultura e civilização romanas, para a formação do jovem de hoje, ajudando às suas capacidades de análise e de reflexão críticas, ao domínio da expressão das ideias, ao enraizamento e clarificação de valores e convicções.

Não é aceitando a ideia de que o latim não se adapta ao ritmo de hoje que estamos a contribuir para a formação do adulto de amanhã.

Aliás, se recuarmos um pouco no tempo, verificamos que problemas do mesmo tipo sempre existiram.

Com efeito, já em 1912, um professor francês comentava: " Como não se estuda latim, a frase francesa clássica cai em desuso" e, mais longe, aparece-nos o queixume de um responsável do ensino, em 1863, pois, dizia ele, "certo candidato não compreendia as palavras  condicional  e peroração", ou, em 1860, a observação  de um Reitor de Grenoble: " na prova de versão latina, os candidatos pecam frequentemente por ignorância ou negligência das regras da tradução e ao mesmo tempo por ausência de uma leitura pensada dos autores franceses."[1]

Nada de novo, afinal. Não é só uma questão do tempo actual, um resultado das novas tecnologias, da comunicação audio-visual, da sujeição à imagem.  Será uma fatalidade?

Uma reflexão sobre estas questões permitirá, quem sabe, minorar um pouco esta fatalidade.

Nunca como hoje se falou tanto em Didáctica, em métodos pedagógicos, em pedagogia dos processos de ensino/aprendizagem, etc.. Há, realmente, necessidade de uma constante adaptação do ensino/aprendizagem às novas exigências, às capacidades dos alunos. Mas isto sem esquecer que os alunos de hoje são tão capazes como os de ontem, que têm, até, outras capacidades, podem desenvolver outras aptidões que a outros não eram possíveis. Significa, pois, que não é "facilitando" que ajudamos o jovem no seu crescimento. É necessário provocar o desenvolvimento das capacidades e não deixar que elas se atrofiem porque não exercitadas, porque o trabalho não exige a sua actuação.

A Lei de Bases do Sistema Educativo, ao definir os objectivos para o Ensino Secundário põe em destaque o raciocínio, a reflexão e a curiosidade científica chamando a atenção para a necessidade de desenvolver objectivos instrumentais, isto é, capacitar o jovem para o futuro, incutir nele o espírito de observação e análise, de aprendizagem constante, a capacidade crítica perante o mundo e as coisas, prepará-lo para estar pronto a aprender, sempre.

É preciso, no entanto, não esquecer que estes objectivos instrumentais necessitam de um suporte cognitivo, de uma base, que permita a estruturação significativa dos novos conhecimentos noutros conhecimentos básicos já existentes. Não se pode partir do nada e ninguém está desperto para a aprendizagem, apto à investigação de novos conhecimentos se não possuir uma base de apoio.

Por isso, o aluno necessita de aprender conceitos básicos, de memorizar, para, na altura própria, poder recorrer à sua memória e partir para novos saberes.

Ora, para conseguir o "suporte cognitivo" necessário ao prosseguimento de estudos, o aluno terá de reter os conhecimentos adquiridos na memória, o que só conseguirá se ele organizar os seus próprios esquemas guardando-os naquilo a que A. de La Garanderie chamou o "imaginário do futuro"[2]. Os conhecimentos são retidos não só porque o aluno está motivado mas também porque ele se imagina a utilizá-los num futuro mais ou menos próximo, pois, segundo o mesmo autor, "o esboço mental do futuro é uma estrutura suficiente para aí colocar os conhecimentos a conservar".

É a metacognição, conceito que, com este ou outro nome, sempre foi importante e significativo, na medida em que refere um processo na estrutura do conhecimento sempre necessário e indispensável para o desenvolvimento cognitivo. Temos necessidade de organizar os nossos conhecimentos, de procurar os esquemas mais apropriados, de estabelecer a nossa "base de dados" e conhecer a forma de a activar quando necessário.

São, portanto, necessárias três atitudes pedagógicas fundamentais: a atenção, a reflexão, a memorização.

Ora, a memória foi, durante largos anos, descuidada na relação pedagógica, como reacção ao ensino tradicional, repetitivo, memorizante. Caiu-se, então, no exagero oposto, pensando que não se deve exigir da criança ou do adolescente um recurso à memória, mas apenas à compreensão, ao raciocínio.

E, no caso do estudo de uma língua, é necessário conhecer o vocabulário ("memorizar"). Apesar de o latim não ser uma língua moderna, falada, e de só termos acesso a ela através do texto escrito, esse facto não exclui a necessidade de fixar vocabulário para uma mais correcta e rápida compreensão do texto. Não é "sobrecarregar" a memória "obrigar" o jovem a ir retendo o significado dos vocábulos latinos mais correntes, para que possa analisar textos simples sem recorrer ao dicionário.

Será por isso necessário treiná-los para a memorização do vocabulário, e não só, das questões gramaticais, do essencial dos temas de história, de cultura, de civilização, habituá-los ao confronto com o texto, a recorrer aos conhecimentos guardados no tal "imaginário do futuro".

Será importante organizar, com regularidade, exercícios que despertem para a fixação de vocabulário, para a reflexão sobre o texto latino e seu contexto, para a análise da construção frásica...

A repetição é um desses processos, é certo. Mas não deve ser o único nem demasiado utilizado. Há, no entanto, que distinguir entre a repetição simples e a repetição organizada. Numa repetição elaborada, há o recurso a determinadas organizações sistemáticas, os estímulos cognitivos são diferentes e obrigam, por isso, a raciocinar em diferentes situações, a ver as mesmas questões sob diversas perspectivas. Uma estruturação categorial dos conhecimentos é importante, permite uma comparação e diferenciação, um relacionamento constante dos vários esquemas cognitivos.

Trata-se de conduzir o raciocínio sobre o texto e a frase, de "obrigar" à reflexão e à aplicação de conhecimentos e não ao simples decorar.

...

Em síntese, quisemos, com esta reflexão, salientar a importância e o valor da memória que é preciso estimular nos nossos jovens. Quisemos lembrar que a memória é um instrumento útil e indispensável ao seu pleno desenvolvimento e integração futura, em todas as situações, no mundo do adulto, pois não é possível uma sociedade sem memória, um mundo sem memórias.

                                                                                                  Isaltina Martins

 

[1] Christian Baudelot e Roger Establet, O nível Educativo Sobe , Porto Editora, 1994.

[2] Antoine de La Garanderie, Pedagogia dos Processos de Aprendizagem, Edições ASA, 1989.

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