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A cultura e as línguas clássicas

Temas a tratar: o latim e o grego — seu estudo; a língua e a cultura; as origens da língua portuguesa; etimologias; a cultura clássica e a cultura portuguesa

A cultura e as línguas clássicas

Temas a tratar: o latim e o grego — seu estudo; a língua e a cultura; as origens da língua portuguesa; etimologias; a cultura clássica e a cultura portuguesa

Sobre didáctica das Línguas Clássicas

isa, 23.06.18

 

 Língua e cultura, a inter-relação indispensável

Questões de didáctica da língua latina *

 

Retomemos a "velha" questão do estudo da língua e do estudo da cultura, isto é, das questões linguísticas tratadas independentemente das questões culturais ou da inter-ligação de todas estas questões — as linguísticas e as culturais.

 

A língua é, em primeiro lugar, comunicação, relação interpessoal, mas é também, e ao mesmo tempo, veículo de transmissão de uma cultura. Estudamos uma língua para podermos comunicar através dela, para podermos compreender o povo que a fala, para compreendermos os textos, para lermos as obras que usam esse código linguístico.

Ora, se estudamos a língua enquanto elemento de cultura, então podemos perguntar se é possível separar os dois campos e estudar um sem estudar o outro.

 

A língua é a expressão de um povo, só através dela se pode chegar ao conhecimento da cultura desse povo, do povo que a fala ou a falou. Mesmo falando a mesma língua, isto é usando o mesmo código linguístico, sabemos como é, por vezes, diferente a significação dada a determinados vocábulos que trazem consigo a carga semântica que lhes é atribuída por aqueles que os utilizam e que torna, assim, esses vocábulos incompreensíveis noutros contextos. Basta pensar, por exemplo, no significado de "viver num monte", num contexto alentejano e no que essa expressão significaria para um habitante de Trás-os-Montes desconhecedor da realidade dessa outra região. O transmontano compreenderia os vocábulos, mas, desinserido do seu contexto, não alcançaria o sentido da mensagem e acharia muito estranho esse "viver". E se relacionarmos com o português do Brasil talvez entendamos a razão de os livros portugueses terem de ser "traduzidos" quando são publicados para o mercado brasileiro. É só lembrar o título do romance de Lobo Antunes "Nos Cus de Judas", expressão idiomática que tem para nós um significado próprio, mas que se tornava incompreensível para os brasileiros. Daí que o título do romance, quando publicado para o Brasil, tenha passado a ser "Nos cafundós de Judas".

 

Quando se trata de textos de épocas passadas, mais evidente se torna a necessidade de conhecer o contexto epocal: veja-se o sentido do "humilde gesto" na poesia de Camões ou o lamento da donzela medieval pela ausência do seu "amigo" que "se foi no ferido" ou "no fossado". O sentido do vocábulo só se compreenderá com o conhecimento da época, do mesmo modo que certa crítica irónica de Garrett nas "Viagens na Minha Terra" não terá significado sem a descodificação das referências culturais, clássicas ou outras, a que o autor recorre com frequência.

 

Parece, pois, ser incontestável que, se o texto é um documento, um testemunho de um povo, ele reflecte a cultura do seu autor que, por sua vez, é reflexo da cultura do seu povo e da sua época. Torna-se, então, indispensável relacionar o texto com o contexto em que surgiu, conhecer os ideais do povo que o produziu, em suma, inseri-lo num contexto histórico-cultural. Só conhecendo o enquadramento em que o texto surge poderemos compreendê-lo, só o tempo e as circunstâncias poderão explicar o sentido exacto de determinada expressão linguística, duma mensagem concreta.

 

Se é certo que podemos chegar ao conhecimento da cultura e civilização romanas através de textos de autores modernos, é certo também que esses autores chegaram a tais conhecimentos através das fontes clássicas: fontes arqueológicas, epigráficas, literárias, logo, na sua maioria fontes linguísticas. Só o conhecimento da língua levará, então, ao conhecimento da cultura. Daí que o estudo da língua e o estudo da civilização e cultura se inter-liguem estreitamente e que o estudo de uma e de outra tenha de ser feito a par, e que para compreender o texto seja necessário conhecer os referentes extra-linguísticos.

Só a ausência de conhecimentos histórico-culturais pode ter levado um tradutor [trata-se de um romance histórico sobre episódios da história de Roma] a dizer que no ano 450 a.C. se deu a "publicação das Leis Romanas sobre as Doze Mesas".

 

É que, para chegar à tradução, isto é, à transposição da mensagem escrita numa língua para uma outra, é indispensável compreender, em primeiro lugar, essa mensagem dentro do seu contexto, linguístico e cultural, as relações de intertextualidade e de intratextualidade. Depois disso, exige-se também o conhecimento das línguas que permita a relação semântica entre os vocábulos das duas línguas em confronto. É esse desconhecimento que leva o mesmo tradutor já citado a dizer, quando se fala de regras de escrita e de retórica, que uma das qualidades do discurso é a "claridade" (em vez "clareza"), ou, numa outra situação em que um cavaleiro prefere uma mula possante e corpulenta a um raquítico cavalo que não aguentaria uma longa viagem, traduzir uma observação feita a propósito deste modo "Não foi, pensei, o sangue campesino de Frontino que o fazia emparelhar com as mulas".

 

Traduções destas mostram um desconhecimento do campo de aplicação do substantivo "claridade" e do verbo "emparelhar" e a não adequação do vocábulo ao contexto em que se insere.

São exemplos diferentes os aqui apontados mas em todos podemos ver como os aspectos linguísticos e os culturais estão intimamente unidos e como o vocábulo perde o seu significado quando desinserido do contexto próprio.

São também reflexos de uma cultura expressões do tipo "trabalhar como um mouro" ou "é tratado como um galego" que, certamente, não seriam compreendidas do mesmo modo entre o povo da Galiza ou no mundo árabe. Também "fazer judiarias" só faz sentido em contexto cristão e o conceito de judeu como o "usurário", o "agiota", que muitos textos nos transmitem, reflecte a tradição vinda de uma época histórica e será para o povo judeu um insulto incompreensível.

 

Será assim no estudo da língua latina, ou da língua grega. Não pode ensinar-se a língua sem nesse estudo incluir a história do seu povo, a sua cultura. Os conhecimentos extra-textuais e extra-linguísticos são essenciais para bem compreender a mensagem que o texto transmite.

Se, por um lado, cada texto possui em si próprio um sentido completo, isto é, contém no seu interior toda a informação necessária, por outro, para uma correcta e completa compreensão do mesmo, torna-se necessário não só inseri-lo na época, como possuir conhecimentos sobre as crenças e costumes dos romanos que determinam as acções de que o texto nos fala.

Isaltina Martins

  • Texto introdutório a uma acção de formação sobre didáctica da língua latina, realizada em Abril de 2000

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