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A cultura e as línguas clássicas

Temas a tratar: o latim e o grego — seu estudo; a língua e a cultura; as origens da língua portuguesa; etimologias; a cultura clássica e a cultura portuguesa

A cultura e as línguas clássicas

Temas a tratar: o latim e o grego — seu estudo; a língua e a cultura; as origens da língua portuguesa; etimologias; a cultura clássica e a cultura portuguesa

As Línguas Clássicas em França

isa, 05.03.18

Quando confrontamos a situação actual das línguas clássicas no nosso sistema educativo com o que se passa noutros países, nomeadamente em França, torna-se ainda maior a nossa angústia ao verificar a distância que nos separa.

No sistema educativo francês, os alunos que frequentam os anos correspondentes ao nosso 3º ciclo do Ensino Básico (o Collège) têm hipótese de escolher as disciplinas de Latim e de Grego, e são muitos os que o fazem (no ano lectivo de 2017-2018 frequentam as disciplinas de latim e de grego – colégio e liceu — 515 845 alunos). No entanto, uma reforma do anterior governo, que gerou protestos vindos de vários quadrantes, veio alterar bastante essa situação no Collège ao incluir as horas destinadas ao latim e ao grego numa “dotação complementar” que colocava a abertura de turmas na dependência dos directores de estabelecimento e na “concorrência” com outras disciplinas. Tudo está, porém, a mudar com o Ministro da Educação do governo actual, regressando um pouco ao que era normal antes da polémica reforma.

 

A revista semanal Valeurs actuelles, de 2 de Março de 2018, publica um texto de Jean-Paul Brighelli (aqui) que é uma entrevista a Pascal Charvet, inspector honorário de Letras Clássicas, que, jutamente com o Inspector David Bauduin, acaba de enviar ao Ministro da Educação Jean-Michel Blanquer “um relatório muito circunstanciado (documento completo aqui ) defendendo uma reinserção nos cursos escolares da nossa herança greco-latina.” Uma postura que, como diz JP Brighelli, “alguns pedagogos modernistas consideram “passadista”, “um reflexo “elitista”, dizem eles, face a um ensino “ de dimensão segregativa”.

Para esclarecer o seu relatório, este classicista responde, desenvolvidamente, às perguntas de Brighelli.

Destacamos alguns pontos importantes dessa entrevista.

 

JPBrighelli:

Estudar o latim e o grego é elitismo? O seu relatório prova, com apoio estatístico, que não são forçosamente as classes mais favorecidas que reclamam uma iniciação aprofundada à cultura antiga. E desde o início de 2017, o número de latinistas aumentou significativamente, encorajado pela mudança da política ministerial. Como interpretar esta procura?

 

Pascal Charvet:

Esta reputação de elitismo que se atribui às disciplinas que parecem, de maneira errónea, mais exigentes, como as matemáticas, o alemão, o chinês, o latim e o grego é um estereótipo tão perigoso à sua maneira como aquele que no campo da orientação afasta as raparigas dos estudos científicos. É preciso torcer o pescoço a este preconceito arcaico, e compreender que aqueles que o espalham estão com uma geração de atraso.

Hoje os números são eloquentes: a análise das categorias sócio-profissionais do conjunto dos alunos da escola pública que estudam latim no colégio mostram a seguinte distribuição: 34,4% de alunos vindos de categorias sócio-profissionais favorecidas A (A: quadros, profissões intelectuais superiores, chefes de empresas, professores das escolas, etc.). O resto, 66,6% é constituído por — 24,8% de alunos vindos de CSP médias (agricultores, artesãos, empregados, comerciantes, etc.), 26,4% de CPF desfavorecidos (operários, desempregados, etc.) e 14,4% de favorecidos B (profissões intermediárias, enfermeiros, etc). A título de simples comparação, para o chinês, os alunos de CSP favorecidas (A) são de 40,9% contra 34,4% para o latim.

Se a escolha do latim e do grego é efectivamente bastante frequente nos meios favorecidos, isso não se deve ao facto de os pais desejarem que os seus filhos estejam numa boa classe, pois há muito que os latinistas no colégio estão repartidos por classes diferentes. Esta orientação que privilegia os meios favorecidos reflecte certamente uma vantagem social, mas num sentido diferente daquele que lhe dão certos comentadores, pois que estes pais conhecem melhor as condições e os vectores do sucesso. São códigos culturais que devem ser partilhados plenamente entre todos os pais no campo da orientação, para uma informação transparente e precisa, e não as disciplinas exigentes que devem ser postas em causa.

Os pais de meios desfavorecidos devem, eles sim, lutar contra estes preconceitos que acabam por gerar entre alguns deles uma forma de auto-censura com o sentimento de que isso não é para eles. Estes preconceitos produzem assim insidiosamente uma dupla exclusão social e intelectual. E contudo os números são eloquentes, e a correlação efectiva entre aprendizagem do latim e sucesso escolar é flagrante: no bac geral e tecnológico, estes alunos vindos de pais de categoria sócio-profissional desfavorecida, quando não estudaram latim, obtêm no bac uma taxa de sucesso de 38%, contra 61% quando são latinistas, ou seja, 23 pontos de diferença.

...

O renovar do interesse este ano pelo ensino do latim e do grego (mais 22.879 alunos na entrada de 2017) mostra que desde que se sabe que este ensino é chamado a reencontrar o seu pleno estatuto, as famílias o escolhem, porque é seguro e se oferece como uma garantia de sucesso.

 

JPBrighelli:

Fala-se, facilmente, da aprendizagem do francês pelos recém-chegados, e das dificuldades de todos aqueles para quem o nosso idioma não é a língua materna. Um banho de culturas antigas não será uma solução para os fazer apreender de forma mais aprofundada o que é, de facto, o francês? Como se tornarão melhores em francês (o que o vosso estudo prova com o índice de sucesso nos exames do Secundário) fazendo latim e grego?

 

Pascal Charvet:

Não se trata de fazer de todos os alunos especialistas em latim e grego (ainda que eu, no fundo, ficasse encantado) mas de fazer do estudo das Línguas e Culturas da Antiguidade um instrumento eficaz para que os alunos compreendam e aprofundem a sua relação com a língua, com o saber e com o mundo. Concretamente, num momento em que o ensino da língua francesa, do seu léxico e da sua sintaxe conhece as dificuldades que sabemos, as aulas de latim e de grego permanecem hoje como os lugares privilegiados onde pode ainda ensinar-se a gramática de forma analítica. Podemos aí aprender a comparar o francês com o latim e o grego; e esta aptidão para a comparação torna os alunos mais ágeis e precisos. Os professores de línguas como os alunos reconhecem hoje que, muitas vezes, é o estudo da gramática latina ou grega que lhes dá a real compreensão da estrutura da língua francesa e do seu discurso. A aprendizagem do latim e do grego, a identificação necessária das funções para a compreensão das frases, e o valor semântico e justificado das articulações sintácticas, fazem do seu estudo uma escola de rigor, uma autêntica via de emancipação intelectual para estes alunos que descobrem muitas vezes ao mesmo tempo a língua francesa.

...

São, em 2018, os métodos e os conteúdos que têm de ser interrogados. Voltar a dar todo o lugar a uma formação humanista renovada no ensino parece-me a forma mais eficaz de responder a estes diferentes desafios. Falta com efeito no nosso sistema educativo onde a escola não deve ser mais um espaço de reprodução de elite, mas um lugar “democrático” de formação intelectual e de qualificação social, um espaço de encantamento, este banho de cultura antiga que evocou, onde nomeadamente a mitologia e a história das palavras falem à imaginação dos alunos. Mas falta também um “foyer” de aprendizagem que dê um quadro e uma coerência global à sua formação, concebido como uma iniciação cultural aos códigos, aos saberes e às práticas. As Humanidades clássicas estão habilitadas a colmatar estas faltas e a dar a todos os alunos os códigos indispensáveis para uma integração bem sucedida.

...

(E, mais adiante, refere essa relação entre os povos mediterrânicos)

 

Pascal Charvet

Sim, esta incapacidade para muitos de ter em conta os dados da história é surpreendente. O estudo do latim e do grego e das suas literaturas, tal como as obras de arte e numerosos testemunhos da vida quotidiana vindos dos tempos antigos, têm contudo virtudes pedagógicas determinantes a fim de desenhar aos olhos dos alunos um universo mediterrânico que ultrapassa os discurso colonialistas e pós-colonialistas: uns e outros esqueceram o que foi a vida no seio do Mediterrâneo antigo: nunca houve aí, de facto, verdadeiramente um choque de civilização, mas antes mestiçagem e relações bastante fluidas. Os historiadores da Antiguidade mostram também como a mestiçagem cultural foi aí poderosa e como esta visão de cidades gregas e de um estado romano reduzindo toda a alteridade mediterrânica à sua própria identidade é excessiva e enganadora. Na Fenícia, por exemplo, uma cultura original cristalizou as influências da Grécia, da Anatólia, da Mesopotâmia, da Arábia e do Egipto. ...

O Mediterrâneo é este horizonte comum, não só pelas línguas antigas e a sua aprendizagem (o latim e o grego, principalmete, sem esquecer o aramaico, o siríaco, o púnico e o líbico-berbere), mas por todas as línguas da Europa vindas do latim, enriquecidas pelo léxico grego, e igualmente por todas as línguas vindas dos tempos antigos e que estão ainda vivas hoje, tal como a língua berbere no Magrebe. A aprendizagem do latim e do grego diz respeito a todos os alunos que têm uma ligação com o Mediterrâneo, originários da margem meridional ou oriental, e presentes na escola da República.

(E sublinha)

Quanto ao que é da Europa, partilho plenamente o seu sentimento. O estudo do latim e do grego permite motivar e fixar um alicerce comum europeu e mediterrânico. É por isso que nós não podemos ser os únicos na Europa a programar a desaparição do ensino das Humanidades. A cultura, com efeito, não se define pelos limites de uma identidade “nacional” mas pelas interacções em diversos graus com outras formas de alteridade. A construção europeia foi fundada sobre a ideia de uma comunidade de valores, de inspirações e de história colhidas no coração da cultura greco-latina. Este cimento greco-latino que une os países europeus e fundamenta a sua comunidade ainda hoje, estende-se, culturalmente, a todos os países do Mediterrâneo, nosso mar comum, que definiu outrora o verdadeiro coração do império romano.

(o exemplo vindo de outras culturas...)

Gostaria de acrescentar que nós não podemos conceber uma política educativa sem ter em conta o que se passa no resto do mundo. As outras culturas, quer sejam as da China, de África ou da Índia, ou as do mundo muçulmano, mantêm hoje uma ligação activa e nova com o seu passado antigo. Assim a China, em Janeiro de 2017, refez definitivamente as Humanidades chinesas que integram a matriz da língua clássica, a literatura, assim como a filosofia com os grandes textos confucianos, taoistas e budistas. Este ensino tornou-se obrigatório e dotado dos meios necessários. Independentemente do que tenham sido os anteriores pensamentos políticos do governo chinês, devemos meditar sobre esta lição e ser da mesma forma capazes de levantar o que é um verdadeiro desafio cultural. Porque, tal como o mostrou Claude Lévi-Strauss, o relativismo torna-se um perigo mortal, não quando uma cultura se abre aos outros modelos culturais, mas quando ela não tem o conhecimento mínimo de si mesmo, o que lhe permite reconhecer e acolher a alteridade como tal. E este conhecimento de si em França e na Europa passa necessariamente pela assimilação cultural das Humanidades greco-latinas que são um objectivo essencial para a educação escolar.