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A cultura e as línguas clássicas

Temas a tratar: o latim e o grego — seu estudo; a língua e a cultura; as origens da língua portuguesa; etimologias; a cultura clássica e a cultura portuguesa

A cultura e as línguas clássicas

Temas a tratar: o latim e o grego — seu estudo; a língua e a cultura; as origens da língua portuguesa; etimologias; a cultura clássica e a cultura portuguesa

Ifigénia - II

isa, 14.09.23

Na sequência do post anterior (aqui).

Na versão que Eurípides nos conta, Ifigénia, salva por Ártemis do sacrifício,  foi levada pela deusa para o país dos Tauros, tornando-se sacerdotisa no templo de Ártemis. É esse o tema tratado na tragédia de Eurípides "Ifigénia entre os Tauros" ou "Ifigénia Táuride".

A Táurica ou Táurida corresponde à actual península da Crimeia. O nome que lhe deram os Gregos — Ταυρική Χερσόνησος (península Táurica) deriva do nome dos seus habitantes, os Tauros — Χερσόνησος, Quersoneso, significa, em grego, "península" — de νῆσος "ilha" + χέρσος "terra firme", "continental", daí "península", quer dizer, uma ilha ligada ao continente. Há também na Quersoneso Táurica uma cidade chamada Quersoneso.

Os Tauros (tauri, em latim), descendentes dos antigos cimérios, eram os habitantes da região meridional da Crimeia, mas o nome estendeu-se, depois, a todos os habitantes da península. Segundo a lenda referida por Heródoto, foi Héracles que lavrou aqueles campos com um touro (taurus) daí derivaria o nome. Foi nesta região que se estabeleceram os Gregos, fundando várias colónias.

Ponto Euxino.png  

Ucrânia e Crimeia.png

Os mapas mostram-nos as antigas colónias gregas na Península Taúrica e a actual Crimeia, península ligada à Ucrânia.

A colónia grega chamada Quersoneso ou Quérson, situava-se no local da actual cidade de Sevastopol. Aí podemos visitar a zona arqueológica com uma grande área escavada:

ruinas de Sevastopol antiga Quersoneso.jpg ruinas de Querson.jpgistockphoto-480731963-612x612.jpg

Foi, então, para esta região dos Tauros que Ártemis levou Ifigénia. O seu serviço como sacerdotisa da deusa levava-a a sacrificar todos os estrangeiros que ali chegavam como náufragos. Até que um dia aí aportou o seu irmão Orestes com o amigo Pílades. Orestes, depois de consultar o oráculo de Delfos, ia à Táurica em busca da estátua de Ártemis, no templo onde Ifigénia era sacerdotisa.

Reconhecendo o irmão, Ifigénia não os sacrificou. Levando a estátua da deusa, fugiu com eles para a sua terra da qual sentia saudades. Na obra de Eurípides, esta é uma tragédia com final feliz.

Ifigénia e Orestes.jpg

Neste mosaico romano (séc.II/III), que se encontra no Museu do Capitólio, vemos Ifigénia, com uma estátua de Ártemis na mão, em frente a Orestes.

(mapas e fotografias extraídos da net)

 

 

Uma história em imagens — Ifigénia

isa, 13.09.23

Na sequência do texto anterior (aqui) falarei hoje  de mais uma história contada em imagens.

Trata-se da história de Ifigénia (em grego : Ἰφιγένεια, nome que tem na sua formação o advérbio ἶφι que significa "com força", "com valor" e o substantivo γένος "nascimento", "raça", "origem" — Ifigénia será, portanto, de uma origem cheia de força, de uma raça valorosa).

Na mitologia grega, Ifigénia era a filha de Agamémnon e de Clitemnestra e foi sacrificada pelo pai para aplacar a ira de Ártemis que impedia a partida da armada para Tróia.

Nas Metamorfoses conta-nos Ovídio que:

"Quando a dor da afronta de um só assolou os Dánaos todos,

mil navios encheram a baía de Áulis, defronte de Eubeia.

Muito tempo aguardaram vento para a frota, mas vento algum

 se ergueu, ou então era contrário. A Agamémnon cruel profecia

ordena que sacrifique a inocente filha à desapiedada Diana.

(Ovídio, Metamorfoses, XIII, 181-185 - tradução de Paulo Farmhouse Alberto, Livros Cotovia)

Reunida a armada em Áulis, pronta a partir para Tróia, para vingar a ofensa do rapto de Helena, Agamémnon terá ofendido Ártemis (Diana para os Romanos), quando, numa caçada, se julgou superior à deusa. Como vingança, a ausência de ventos, ou ventos contrários impediam a partida da armada. Perante a impaciência de todos, é consultado o adivinho Calcas que lhes diz que a cólera da deusa só terminará com o sacrifício da filha de Agamémnon, Ifigénia. Ainda que resistindo a tal horror, Agamémnon é pressionado a cumprir a exigência de Ártemis e manda vir de Micenas a filha, com o pretexto enganoso de a casar com Aquiles. Porém, quando a jovem estava prestes a ser sacrificada no altar de Ártemis, a deusa teve piedade dela e substituiu-a por um veado, tendo-a levado para Táuris para ser sacerdotisa no seu templo (esta história será contada noutro post).

Continuamos com Ovídio:

"    ............ e Ifigénia, prestes a dar seu casto sangue,

estava de pé, diante do altar, entre os oficiantes em lágrimas,

a deusa cedeu e tapou o olhar de todos com uma névoa. A meio

da cerimónia, do alvoroço do sacrifício e das vozes das orações.

diz-se que ela trocou a jovem de Micenas por uma corça."

(Ovídio, Metamorfoses, XII, 30-34 - tradução de Paulo Farmhouse Alberto, Livros Cotovia)

Vejamos a história retratada num fresco de Pompeios, que se conserva no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles — O sacrifício de Ifigénia (Casa do Poeta Trágico, fresco do séc. I d.C.):

578px-Fresco_Iphigeneia_MAN_Naples.jpgimagem da net

Aqui vemos Ifigénia a ser levada para o sacrifício por Ulisses e Diomedes, tendo ao lado o adivinho Calcas; a jovem, de braços levantados, parece pedir piedade à deusa; no canto esquerdo, o pai, Agamémnon, tapa o rosto para esconder a dor; na coluna vemos a representação da deusa, ladeada pelos cães, visto ser a deusa da caça; no céu aparece Ártemis, trazendo consigo o veado que irá sacrificar em vez de Ifigénia.

Esta história, retratada por Ovídio e por Eurípides terá inspirado também o pintor do século XVIII, Giambattista Tiepolo, que assim representou a cena, numa sala da Villa Valmarana, em Vicenza, em 1757:

Giovanni_Battista_Tiepolo_-_The_Sacrifice_of_Iphigimagem da net

Ao centro vemos o sacerdote pronto a sacrificar a jovem, enquanto ao lado aparece Ártemis com o veado para o colocar no lugar de Ifigénia, perante o olhar de espanto de todos os presentes; só Agamémnon não olha, mas cobre o rosto com o manto para esconder o seu sofrimento.

Na literatura grega, é Eurípides que trata este tema nas suas tragédias. Em Ifigénia em Áulide, a jovem oferece-se heroicamente ao sacrifício:

Em círculos dançai, à volta do templo,

à volta do altar, em honra de Ártemis,

da soberana Ártemis,

a bem-aventurada, pois que — assim é preciso —

com o sacrifício do meu sangue

os oráculos apagarei.

Eurípides, Ifigénia em Áulide, 1480-1485.

— em tradução de Carlos Alberto Pais de Almeida, também ele vítima inocente de uma guerra, em terras africanas; publicação póstuma do Instituto de Alta Cultura e do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1974.

Livro Ifigénia.jpg 

Também  Sophia de Mello Breyner lhe dedica um poema.

Ifigénia

Ifigénia levada em sacrifício,
Entre os agudos gritos dos que a choram,
Serenamente caminha com a luz,
E o seu rosto voltado para o vento,
Como vitória à proa dum navio,
Intacto destrói todo o desastre.
in Coral - Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética, Caminho, 2010.

Pátroclo e Aquiles

isa, 08.09.23

Os vasos gregos contam-nos histórias, construindo com as suas pinturas uma banda desenhada sem palavras.

Um exemplo disto está no chamado “Vaso de Pátroclo”.

vaso de Patroclo inteiro.jpg

Proveniente de Canosa de Puglia, é um cráter  ou cratera  (em grego κρατήρ, κρατῆρος ) de volutas, de figuras vermelhas, datado de 340-320 a.C., que foi encontrado, em 1861, numa sepultura subterrânea, (hypogeum) e que pode ser apreciado no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles.

Ao centro estão representadas as cerimónias fúnebres em honra de Pátroclo, o amigo de Aquiles que, na Guerra de Tróia, combatendo com as armas do próprio Aquiles (que se recusava a combater, depois da disputa com Agamémnon por causa de uma cativa), foi morto por Heitor. A legenda identifica a representação da gravura — Πατροκλου ταφος (Πατρόκλου τάφος) "funerais de Pátroclo":

a legenda.png

Ao centro a pira funerária com as armas do defunto (o capacete, o peitoral, o escudo e a protecção das pernas); do lado esquerdo, Aquiles  agarra um prisioneiro para ser sacrificado, vendo-se atrás mais três prisioneiros amarrados, que serão também sacrificados em honra de Pátroclo (1):

pormenor.jpg

(1): Na Ilíada, Canto XXIII, versos 19-23, Aquiles exclama:

" Saúdo-te, ó Pátroclo, também agora na mansão de Hades.

Todas as coisas eu cumpro que antes te prometi:

arrastei para aqui Heitor, para os cães o comerem cru;

e na tua pira funerária cortarei as gargantas a doze

gloriosos filhos dos Troianos, irado porque foste chacinado." (tradução de Frederico Lourenço)

Do lado direito é Agamémnon que presta as homenagens na pira funerária, tendo aos pés um vaso com os líquidos para serem vertidos sobre a pira;  atrás dele, duas figuras femininas, a mulher (?) e uma serva.

Ao fundo vemos o carro, conduzido por Automedonte, trazendo de rastos o cadáver de Heitor.

+ pormenor.png

Na parte superior:pormenor superior.png

Ao centro, os sábios conselheiros, os anciãos Nestor e Fénix, ladeados à esquerda e à direita pelos deuses protectores dos Aqueus: vemos Atena (identificada com o escudo), Hermes (com a vara/caduceu); vemos também a mãe de Aquiles, Tétis, sempre na sombra do filho, a tentar protegê-lo, e Quíron, o Centauro que educou Aquiles.

Uma história, contada em imagens, gravada na cerâmica.

vaso de Pátroclo.jpg

(fotografias extraídas da net)

CATARATAS

isa, 07.06.23

No post anterior falei de facectomia, a cirurgia às cataratas, e sua etimologia.

E catarata? Que relação existe entre este "opacidade" do cristalino (do olho) e as quedas de água?

O vocábulo "catarata" chega-nos através do latim "cataracta" (catarata, comporta, represa) que, por sua vez, deriva do grego καταράκτης (= καταρράκτης ), "queda de água", da raiz do verbo καταρρέω "cair, desabar, cair para baixo".

Ora, segundo Hipócrates, a "opacidade do cristalino que impede a chegada dos raios luminosos à retina" deriva da queda de um líquido que escorre do cérebro para os olhos. Daí o nome "catarata".

cataratas.JPG

FACECTOMIA

isa, 02.06.23

A história das palavras é sempre fascinante. Procurar o étimo de cada vocábulo leva-nos a uma viagem sempre enriquecedora.

Assim, uma "simples" operação às cataratas de uma amiga, levou-me a procurar a designação científica deste tipo de cirurgia — trata-se de uma facectomia.

Ora, diz-nos o dicionário que o termo facectomia vem de φακός, termo que em grego significava "lentilha" (e φακός, εἴδος - quer dizer, em forma de lentilha), o nome científico do cristalino do olho, pela sua forma certamente.

O cristalino é uma lente ocular, que, quando se torna opaca, tem de ser removida através de uma cirurgia — a facectomia.

Por outro lado, em latim lens, lentis significava "lentilha"; daqui deriva o disco de vidro, a lente em português; do  diminutivo latino "lenticula" (uma pequena lentilha)  deriva o português "lentilha".

Portanto, o termo corrente, lente, e o termo médico para o cristalino do olho (uma lente) têm origens diferentes, uma veio através do latim, enquanto a ciência foi buscar o étimo ao grego.

Não confundir esta lente, com "o lente", nome dado ao professor catedrático noutros tempos. Este lente é aquele que lê, tem origem no particípio presente do verbo latino legere "ler".

Alma mater - etimologias

isa, 01.03.23

No dia 1 de Março de 1290, o rei D. Dinis cria os Estudos Gerais, em Lisboa (que mais tarde se fixarão em Coimbra), com o diploma "Scientiae Thesaurus Mirabilis". Esta data marca o nascimento da Universidade de Coimbra.

À universidade se chama, muitas vezes, Alma Mater.

O que significa isto?

"Alma" é um adjectivo latino, no género feminino, que significa "alimentadora, criadora, maternal".

O adjectivo está, nesta expressão, a classificar "mater" (= mãe). Assim, a Universidade é a "mãe alimentadora", "a mãe que alimenta". Tal como a mãe alimenta um filho, assim a Universidade alimenta o espírito dos seus alunos.

Este adjectivo pertence à mesma família do verbo alo, alis, alere que significa "alimentar", "fortificar".

É derivado deste o substantivo alumnus (que deu o português "aluno"). O vocábulo alumnus designava, em latim, a criança de peito (que era alimentada pela mãe), daí a designação passou para aquele que era alimentado pelos mestres, o aluno.

Assim os vocábulos evoluem do sentido primeiro, material, para um sentido espiritual, cultural.

A esta mesma família pertencem os vocábulos: alimento, alimentar.

Saber Latim - língua de cultura

isa, 27.02.23

"O Latim não é simplesmente um idioma, é uma porta para o conhecimento" — afirma Emílio del Rio, professor de Filologia Latina na Universidade Complutense de Madrid, ao jornal El Correo, de Miranda do Ebro, de 24 de Fevereiro de 2023 (a notícia pode ser lida aqui).

Na verdade, "não é possível falar de cultura sem falar dos clássicos, da cultura greco-latina, a semente e a raiz de todos os saberes. Da filosofia à retórica e ao direito, das artes plásticas à poesia, os autores gregos e romanos são a fonte onde sucessivas gerações vão beber. E nenhum modernismo ou choque, artístico ou tecnológico, pode sequer pensar em pôr de parte esta herança milenar que, sempre, ainda quando abertamente negada e atacada, está na base de qualquer conhecimento, actualizado e renovado em todas as épocas" (I. M. 2008).

E, como diz o professor Emílio del Rio:

"Leer a los autores clásicos es el mejor manual de autoayuda que puedas encontrar, pero de autoayuda real para tu día a día, no un manual de esos para que te crezca el pelo".

Por isso, sigamos o conselho do grande poeta:

Dimidium facti, qui coepit, habet; sapere aude,
incipe
(Horácio, Ep. I, 40)

"O que começou tem já metade do feito; ousa saber,

começa!"

Sabendo que:

  • Nemo potest omnia scire — Varrão, De Re rustica - Ninguém pode saber tudo.mas:
  • Nihil dulcius quam omnia scire — Cícero — nada mais agradável do que saber tudo.
  • Vt sementem feceris, ita metes — Cícero, De Oratore — Conforme fizeres a sementeira, assim colherás.

Os mitos Gregos e a actualidade — "o grego que todos falamos sem o saber"

isa, 11.03.22

Transcrevo, em tradução, mais uma crónica (que pode ser ouvida aqui ) da Professora belga Pascal Seys, na sua habitual rubrica na Rádio de Bruxelas Musiq3.

Sempre atenta à actualidade, mas nunca esquecendo o passado, Pascal Seys mostra-nos, mais uma vez, como as palavras dos gregos, os seus ideiais e os seus mitos perduraram ao longo dos séculos e têm reflexo nos nossos dias.

Hoje, a propósito da guerra a que assistimos com a invasão da Ucrânia, fala-nos de Ulisses e do cavalo de Tróia:

A astúcia consiste numa panóplia de estratagemas destinados a enganar ou a ganhar vantagem. Molière tinha o seu Scapin (personagem: lacaio brejeiro e intrigante), Lafontaine a sua raposa e Homero tinha içado Ulisses ao firmamento do heroísmo mediterrânico por causa do seu engenho. Além disso, o qualificativo grego para designar a inteligência de Ulisses é “polytropos”, quer dizer, ágil, hábil e engenhoso. Ulisses é “o homem das mil artimanhas”, manipula as armas, os seus gestos são precisos e a sua palavra inspiradora, convincente e mobilizadora. Está talvez aí a grande marca do seu génio. Ulisses é um conversador. Troça do Ciclope que engana dizendo chamar-se “Ninguém”, seduz uma feiticeira e galvaniza os seus companheiros, despertando neles a força e a coragem com palavras de circunstância.

É, contudo, contra vontade, depois de se ter feito passar por louco para não ter de abandonar o seu filho e a mulher, que Ulisses deixa Ítaca para se empenhar no combate no campo dos Aqueus em Tróia. Para vencer ele desenvolve uma ideia de génio, um ardil velho como o mundo que a linguagem informática chama Troiano para nomear um ataque surpresa, técnica que se ensina em particular nas academias militares na Rússia, cujo embuste operacional é designado pelo nome: maskirovka, quer dizer, a camuflagem pela desinformação. O regulamento de 1929 do Exército Vermelho constatava que “a surpresa exerce um efeito entorpecedor sobre o inimigo” daí que todos os meios são bons para inventar pretextos, argumentos, falsas promessas e artimanhas destinadas a enganar os seus inimigos.

É ainda verdade hoje.

No tempo da guerra de Tróia é uma maskirovka com cabeça de equídeo que Ulisses inventou para fazer triunfar o campo humilhado dos Gregos. Humilhado, sim, porque o motor desta guerra mitológica foi  o ciúme. O príncipe troiano Páris rapta a bela Helena, esposa do rei de Esparta, Menelau, e provoca em resposta à ofensa, uma expedição guerreira de várias armadas aliadas, com consequências funestas em cascata: a morte de Heitor, a cólera de Aquiles, o sacrifício de Ifigénia, e uma maskirovka de génio: o cavalo do Tróia. Recordem. A cidade de Tróia está cercada há dez anos pelos Gregos. Os combates continuam sem vitória e o resultado do conflito permanece incerto. É preciso pois encontrar uma solução, passando pelo “ardil”.

Epeu constrói um gigantesco cavalo de madeira ajaezado em ouro, que os Gregos deixam sob a forma de oferta aos Troianos diante das portas da cidade. É uma bomba ao retardador porque, no interior do animal, estão escondidos guerreiros, armados até aos dentes. Em seguida, os Gregos incendeiam o seu campo, fingem retirar as suas tropas e os seus navios, que dissimulam um pouco mais longe, ao largo da ilha de Ténedos. Mas a manobra é um ardil. Primeira maskirovka. Entretanto, os Troianos, protegidos atrás das muralhas da cidade, encontram-se sós numa cidade deserta e estranhamente silenciosa, face ao imenso cavalo que suscita ao mesmo tempo a sua desconfiança e excita a sua curiosidade. É então que aparece Laocoonte, literalmente “aquele que compreende o povo” e que exorta os Troianos a desfazerem-se do cavalo através de uma frase célebre referida em latim por Vergílio: “Quidquid id est, timeo Danaos et dona ferentes” – “o que quer que isto seja, temo os Gregos, mesmo trazendo presentes”.  O presente em questão, a pretensa prenda, cada vez menos recebida como tal, está envenenado, mas a armadilha funciona. Segunda maskirovka. Os Troianos abrem as portas da cidade para fazer entrar o cavalo mítico.

O desenlace do conflito está próximo. Durante a noite, uma armada de homens com pressa de resolver a guerra e voltar a suas casas, sai do ventre do animal e o combate desenrola-se no interior das muralhas de Tróia; acaba com a vitória dos Gregos. Não é ilegal, não é fazer batota, não é um crime, nem mesmo um delito. Isto chama-se um ardil de guerra, uma versão grega da maskirovka. E eis como, atravessando os tempos, as palavras e os mitos nos trazem à nossa memória. A guerra de Tróia lembra-nos que através do Grego, que falamos sem o saber, é o mundo futuro  que o passado nos dá a ver.

Neologismos: solastalgia

isa, 03.03.22

O Latim e o Grego estão na base da língua portuguesa, mas também de outras línguas, mesmo as de origem não românica. E, quando é preciso criar palavras novas para designar novas realidades, é ao Grego e ao Latim que qualquer cientista (seja qual for a sua área de investigação) ou filósofo recorre de imediato.

Foi assim com o neologismo: solastalgia. Da sua origem nos fala a professora de filosofia belga Pascale Seys numa das suas crónicas semanais na Musiq3 - uma estação de rádio de Bruxelas, que pode ser ouvida aqui :

As primeiras palavras do Génesis contam o começo do universo simultaneamente ao nascimento da linguagem como para significar que os seres e as coisas, os nossos sentimentos e as nosas representações não adquirem uma existência e uma consistência reais senão quando se exprimem no campo da linguística. É o que afirmava o historiador das ideias Jean Starobinski  a propósito de um neologismo culto aparecido no século XVIII que tem a ver com uma languidez emotiva, um estado doentio cujos contornos foram definidos a partir da língua grega  e que acaba de reaparecer sob uma forma nova, tal como uma personagem de romance, para descrever um sentimento contemporâneo, ligado ao que se chama hoje, a eco-ansiedade.

Construída sobre uma associação de termos gregos, o desejo de voltar a casa  nostos e a dor de estar afastado dela algos, a nostalgia aparece pela primeira vez numa tese de medicina em 1688  para descrever um sentimento doloroso que se traduzirá por “Heimweh” em alemão e “Homesickness” em inglês a fim de descrever uma perturbação psicológica de consequências graves, que afecta os soldados e os migrantes no seu desejo de regressar à sua pátria. Um e outro sentem uma melancolia ligada ao lugar de origem , uma necessidade e uma falta do “chez soi (em sua casa)”, conhecido sob o termo de “mal du pays”, que conhecem também aqueles e aquelas que mudam de cidade e de paisagens, e aqueles e aquelas que mudam de casa. A nostalgia descreve pois o desejo de voltar a casa ou a si, ao seu país, de reencontrar os gostos da cozinha local  e a tranquilidade de dambular num território conhecido, privação dolorosa que nenhum medicamento permite tratar nem aliviar.

Desde Hesíodo, nos Trabalhos e Dias, depois em Virgílio e Ovídio que os seguem, os gregos dispunham eles também de uma palavra destinado a exprimir um sentimento de saudade  ou de melancolia ligado à recordação de um passado melhor, a que eles tinham chamado idade do ouro.  A idade do ouro, entendida como um tempo de inocência, de prosperidade e de felicidade. O tempo mítico da Idade do ouro era o de uma primavera eterna: as colheitas eram abundantes, os homens alimentavam-se de frutos e não matavam nem os animais, nem os outros homens, viviam sem conhecer a guerra, do mesmo modo que as portas das casas e das cidades não existiam porque o roubo e o instinto de propriedade não existiam. Mas eis que longe da idade do ouro, a nostalgia já não é o que era. Ecoando sempre, o canto melancólico dos nostálgicos do mundo de antes, como um neologismo fez a sua aparição  num registo destinado a traduzir ao presente  uma espécie de tristeza face ao desafio que o futuro representa.  A solastalgia é um conceito que foi criado sobre o modelo de nostalgia pelo filósofo australiano do ambiente Glenn Albrecht, que associou uma raiz latina “solacium” e um sufixo grego “algos” para descrever não tanto “o mal do país”  mas “um mal do país sem exílio”  como o definiu o filósofo da biodiversidade Baptiste Morizot. Face à mudança climática, face à desaparição das espécies e às feridas que o hipercapitalismo inflige ao ambiente, o nosso futuro parece sem “futuro” e a terra assemelha-se a um refúgio incerto. É isto a solastalgia: uma tristeza, um pesar, uma depressão “verde”, que é tida como um sintoma maior face ao sentimento de perda que a terra constitui, um abrigo e um recanto de mundo habitável para a harmonia dos seres vivos.  E eis como palavras e mitos  voltam   à nossa memória. A solastalgia lembra-nos que através  do grego e do latim que nós falamos sem o saber, é o mundo de antes que o passado nos dá a ver.

Filoxenia

isa, 23.01.22

Falemos hoje de uma palavra que nos deveria levar a pensar as questões da actualidade: filoxenia.

Trata-se de uma palavra de origem grega: φιλοξενία que significa hospitalidade.

Formada da união de φίλος “amigo” e ξένος “estrangeiro”, é, na sua etimologia, a amizade para com o estranho, o estrangeiro, o desconhecido.

Conceito muito caro aos antigos Gregos, hospitalidade era um princípio sagrado, uma exigência do pai dos deuses e dos homens, Zeus, que era muitas vezes chamado ZEUS XÉNIOS.

Sempre que alguém chegava a uma terra estranha, era recebido pelo dono da casa que o acolhia com todas as honras, antes mesmo de lhe perguntar o nome. O dever de hospitalidade cumpria-se no acolhimento de qualquer viajante que batesse à porta, dando-lhe tudo o que ele precisava, desde os cuidados de higiene à alimentação. Recebido como um hóspede de honra, só depois o estrangeiro diria, se quisesse, quem era e de onde vinha.

Da raiz da mesmo palavra ξένος “estrangeiro” vem um outro vocábulo contrário: xenofobia, aqui aliado a um outro, oposto a φίλος “amigo”,  xenofobia.

Fobia (do grego φόβος "terror, medo") designa o "temor mórbido" de algo, de alguém, de alguma coisa. Este elemento grego está na raiz de muitas palavras e de muitos dos males da actualidade.

Imitemos os antigos Gregos e cultivemos a filoxenia.