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A cultura e as línguas clássicas

Temas a tratar: o latim e o grego — seu estudo; a língua e a cultura; as origens da língua portuguesa; etimologias; a cultura clássica e a cultura portuguesa

A cultura e as línguas clássicas

Temas a tratar: o latim e o grego — seu estudo; a língua e a cultura; as origens da língua portuguesa; etimologias; a cultura clássica e a cultura portuguesa

Uma história em imagens — Ifigénia

isa, 13.09.23

Na sequência do texto anterior (aqui) falarei hoje  de mais uma história contada em imagens.

Trata-se da história de Ifigénia (em grego : Ἰφιγένεια, nome que tem na sua formação o advérbio ἶφι que significa "com força", "com valor" e o substantivo γένος "nascimento", "raça", "origem" — Ifigénia será, portanto, de uma origem cheia de força, de uma raça valorosa).

Na mitologia grega, Ifigénia era a filha de Agamémnon e de Clitemnestra e foi sacrificada pelo pai para aplacar a ira de Ártemis que impedia a partida da armada para Tróia.

Nas Metamorfoses conta-nos Ovídio que:

"Quando a dor da afronta de um só assolou os Dánaos todos,

mil navios encheram a baía de Áulis, defronte de Eubeia.

Muito tempo aguardaram vento para a frota, mas vento algum

 se ergueu, ou então era contrário. A Agamémnon cruel profecia

ordena que sacrifique a inocente filha à desapiedada Diana.

(Ovídio, Metamorfoses, XIII, 181-185 - tradução de Paulo Farmhouse Alberto, Livros Cotovia)

Reunida a armada em Áulis, pronta a partir para Tróia, para vingar a ofensa do rapto de Helena, Agamémnon terá ofendido Ártemis (Diana para os Romanos), quando, numa caçada, se julgou superior à deusa. Como vingança, a ausência de ventos, ou ventos contrários impediam a partida da armada. Perante a impaciência de todos, é consultado o adivinho Calcas que lhes diz que a cólera da deusa só terminará com o sacrifício da filha de Agamémnon, Ifigénia. Ainda que resistindo a tal horror, Agamémnon é pressionado a cumprir a exigência de Ártemis e manda vir de Micenas a filha, com o pretexto enganoso de a casar com Aquiles. Porém, quando a jovem estava prestes a ser sacrificada no altar de Ártemis, a deusa teve piedade dela e substituiu-a por um veado, tendo-a levado para Táuris para ser sacerdotisa no seu templo (esta história será contada noutro post).

Continuamos com Ovídio:

"    ............ e Ifigénia, prestes a dar seu casto sangue,

estava de pé, diante do altar, entre os oficiantes em lágrimas,

a deusa cedeu e tapou o olhar de todos com uma névoa. A meio

da cerimónia, do alvoroço do sacrifício e das vozes das orações.

diz-se que ela trocou a jovem de Micenas por uma corça."

(Ovídio, Metamorfoses, XII, 30-34 - tradução de Paulo Farmhouse Alberto, Livros Cotovia)

Vejamos a história retratada num fresco de Pompeios, que se conserva no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles — O sacrifício de Ifigénia (Casa do Poeta Trágico, fresco do séc. I d.C.):

578px-Fresco_Iphigeneia_MAN_Naples.jpgimagem da net

Aqui vemos Ifigénia a ser levada para o sacrifício por Ulisses e Diomedes, tendo ao lado o adivinho Calcas; a jovem, de braços levantados, parece pedir piedade à deusa; no canto esquerdo, o pai, Agamémnon, tapa o rosto para esconder a dor; na coluna vemos a representação da deusa, ladeada pelos cães, visto ser a deusa da caça; no céu aparece Ártemis, trazendo consigo o veado que irá sacrificar em vez de Ifigénia.

Esta história, retratada por Ovídio e por Eurípides terá inspirado também o pintor do século XVIII, Giambattista Tiepolo, que assim representou a cena, numa sala da Villa Valmarana, em Vicenza, em 1757:

Giovanni_Battista_Tiepolo_-_The_Sacrifice_of_Iphigimagem da net

Ao centro vemos o sacerdote pronto a sacrificar a jovem, enquanto ao lado aparece Ártemis com o veado para o colocar no lugar de Ifigénia, perante o olhar de espanto de todos os presentes; só Agamémnon não olha, mas cobre o rosto com o manto para esconder o seu sofrimento.

Na literatura grega, é Eurípides que trata este tema nas suas tragédias. Em Ifigénia em Áulide, a jovem oferece-se heroicamente ao sacrifício:

Em círculos dançai, à volta do templo,

à volta do altar, em honra de Ártemis,

da soberana Ártemis,

a bem-aventurada, pois que — assim é preciso —

com o sacrifício do meu sangue

os oráculos apagarei.

Eurípides, Ifigénia em Áulide, 1480-1485.

— em tradução de Carlos Alberto Pais de Almeida, também ele vítima inocente de uma guerra, em terras africanas; publicação póstuma do Instituto de Alta Cultura e do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1974.

Livro Ifigénia.jpg 

Também  Sophia de Mello Breyner lhe dedica um poema.

Ifigénia

Ifigénia levada em sacrifício,
Entre os agudos gritos dos que a choram,
Serenamente caminha com a luz,
E o seu rosto voltado para o vento,
Como vitória à proa dum navio,
Intacto destrói todo o desastre.
in Coral - Sophia de Mello Breyner Andresen, Obra Poética, Caminho, 2010.

Os mitos são necessários ao nosso quotidiano

isa, 06.03.18

Carlos Garcia Gual, catedrático emérito de Filologia Grega da Universidade Complutense de Madrid, em entrevista de 1 de Março de 2018, que pode ser lida aqui, fala sobre “os mitos e a sua ausência na sociedade contemporânea”, afirmando que “O ser humano sem fantasia está muito recortado e limitado”. Ele que é autor de um “Dicionário de Mitos” define-os deste modo:

 

“ os mitos são grandes relatos que permanecem na memória colectiva, falam de personagens extraordinárias que realizaram façanhas ou feitos que de alguma maneira marcam o mundo. E por isso pertencem a um passado prestigioso e geralmente distante.”

“ O saber dos mitos enriquece a imaginação, de modo que a gente que tem pouca cultura está muito limitada. O cinema tem sido um grande difusor de mitos, essencial para a mitologia do século XX.”

 

À pergunta “Que contributo pode dar um helenista à sociedade do século XXI” responde:

 

“ Ser um introdutor ou um guia até esse mundo dos gregos antigos, fascinante pela sua riqueza literária e filosófica. As grandes raízes da nossa cultura estão aí, nas personagens da tragédia, Édipo, Medeia, nos historiadores Heródoto, Tucídides, na “Ilíada” ou na “Odisseia”. Eu sou parcial, mas acredito que esse fundo da cultura europeia continua a ser imprescindível, não há um substituto para isso. Devemos deixar que esse mundo entre na nossa imaginação.”

 

Então jornalista confronta-o com esta pergunta:

“Como convencer alguém a ler um clássico na era das redes sociais?”

Ao que G. Gual responde:

 

“Que façam a prova de ler a Odisseia ou a poesia grega e vejam que é algo muito impressionante. As pessoas têm medo dos clássicos porque pensam que são pesados, coisa de professores, e não; os clássicos continuam a ser os grandes descobridores e guias. O ser humano sem fantasia está muito recortado e limitado, por muito que saiba de futebol e de cozinha.”

 

Questionado sobre a evolução que observa nos alunos e professores, tendo em conta a sua experiência de 50 anos de docência, diz que “os alunos antes liam mais, agora têm muitos ecrãs. O mundo actual é o mundo da imagem mais do que da leitura.” Sobre os professore pensa que a Universidade leva a uma “demasiada especialização “, que antes havia professores que atraíam mais, mais abertos, e, na sua opinião, a “cultura deve ser aberta, não é preciso especializar-se desde o princípio, mas antes tentar compreender o mundo”

 

Numa outra entrevista , ao El País (aqui), em 12 de Fevereiro de 2018, é questionado sobre questões mais pessoais, e refere-se à sua educação de base, ao gosto pelos livros que deve ao avô, que tinha uma boa biblioteca, afirmando que gente como o seu avô “que tinha uma grande cultura literária e estava a par do que se passava, que anotava os seus livros, está a desaparecer”

Comparando os seus tempos de estudante universitário com a actualidade é peremptório a afirmar que “agora os alunos lêem pouco. Fora do que é obrigatório não sabem nada. Passam muito tempo dedicados ao telemóvel, e não lhe fica quase nada para ler.”

 

E acrescenta mais adiante:

“ para mim, ler é entrar num mundo de horizontes quase infinitos e onde há figuras dramáticas e situações e épocas que são muito mais interessantes que o meu próprio contexto. Quem não lê está limitado às sua circunstâncias mais próximas: os vizinhos, a televisão, os jogos. Para mim, a leitura é como um campo de corrida. Sempre li e escrevi sobre aquilo de que gosto... e fiz tudo por prazer."