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A cultura e as línguas clássicas

Temas a tratar: o latim e o grego — seu estudo; a língua e a cultura; as origens da língua portuguesa; etimologias; a cultura clássica e a cultura portuguesa

A cultura e as línguas clássicas

Temas a tratar: o latim e o grego — seu estudo; a língua e a cultura; as origens da língua portuguesa; etimologias; a cultura clássica e a cultura portuguesa

Estudar Latim hoje — metodologias

isa, 07.01.18

Quando se fala na situação a que chegaram as línguas clássicas no nosso ensino secundário (e, por extensão, no superior), culpam-se, muitas vezes, as metodologias de ensino, incompatíveis com os dias de hoje, longe dos interesses dos jovens do século XXI. Os críticos, talvez recordando a forma “desastrosa” como aprenderam latim e a pouca atenção que dedicaram ao seu estudo, dizem que a culpa é dos professores (afinal, não são sempre os professores os culpados dos males do ensino?!) e dos métodos utilizados, que apelam, essencialmente, à memorização, à aprendizagem de regras sem sentido, ao estudo de frases soltas, infantis e ridículas, à luta inglória com um dicionário para dar forma, em português, a um texto antigo, cujo tema se desconhece, de um autor que parece ter sido inventado para tortura dos alunos.

 

É esta a caricatura que se faz das aulas de latim de outros tempos, mas que em nada corresponde já ao que se passa nas escolas actuais, desde há muito.

Longe vão os tempos em que o estudo do latim partia dessa metodologia enfadonha de aprender/decorar regras gramaticais só por si, sem qualquer aplicação ou sentido prático.

A grande mudança começou já nos anos 70 do século passado.

Os métodos há muito são outros, se tivermos em conta as directrizes programáticas e os manuais para o estudo desta disicplina.

 

Se analisarmos com atenção os programas ainda em vigor no ensino secundário, e que datam já de 2001, aí se incluem nos objectivos da disciplina de Latim, entre outros:

 

“— Adquirir conhecimentos específicos de cultura e civilização romanas.

— Identificar a permanência de elementos culturais romanos na moderna civilização ocidental.

— Relacionar aspectos relevantes da cultura portuguesa com a cultura clássica.

— Interpretar o significado de valores tradicionais portugueses na sua relação com o passado.

— Valorizar a identidade da língua portuguesa pelo conhecimento da língua-mãe.

— Reflectir sobre a mensagem que o texto veicula.

— Avaliar criticamente os valores transmitidos e a sua actualidade.”

 

Para , logo de seguida, incluir orientações metodológicas gerais como estas:

 

- Ter sempre presente a relação do texto em estudo com o seu contexto, e a organização de elementos prévios que permitam a sua compreensão.

- Explorar o texto na reciprocidade língua e cultura, tendo em conta um enriquecimento paralelo.

- Ler o texto de forma funcional, partindo da apreensão do sentido global para a compreensão de aspectos particulares.

- Aliar à exploração ideológica a explicitação das estruturas gramaticais necessárias à compreensão do texto.

 

Como se conclui, a base do estudo é o texto, não a frase, e o estudo da língua deve andar a par do estudo da cultura.

Quando se trata de orientações mais específicas para o 10º ano, o primeiro ano do estudo da língua latina, podemos ler, entre as muitas orientações metodológicas, as seguintes:

 

“A leitura em voz alta é um exercício que deve ser praticado desde o início, pois permite que o aluno se familiarize com a língua, fixe vocabulário, que vá, sem esforço, memorizando palavras e estruturas que se lhe tornarão familiares.

A leitura permite captar a ideia geral do texto e, por meio de um questionário logicamente encadeado pelo professor, será feita a exploração dos pontos fundamentais até à compreensão global do texto.

Actividades várias poderão, ainda, ser realizadas:

- levantamento de palavras-chave

- inserção no contexto temático

- resumo do texto

- atribuição de um título.”

 

Mais adianta sublinha-se:

 

“E porque a língua não pode ser entendida sem a cultura que veicula, e porque a mensagem de um texto só faz sentido quando inserida no seu contexto, o estudo da língua e o da civilização e cultura têm de ser paralelos e complementares.”

 

Bem longe estão estas orientações do estudo de frases soltas e sem sentido...

Claro que o estudo da gramática é essencial para um cabal conhecimento da língua, mas será feito a partir do texto, as regras só serão sintetizadas após a observação do seu uso e para compreensão da frase e do texto em estudo. E a memorização será também de grande importância, pois sem memória nada se aprender, não só na língua latina, mas em tudo.

E se confrontarmos com as mais recentes orientações sobre o perfil do aluno à saída do ensino secundário, concluiremos que nada de novo nos trazem, pois, já em 2001, nos mesmos programas, se dizia:

 

“Tendo em vista a consecução dos objectivos definidos, entende-se que o aluno de Latim deverá desenvolver capacidades e conhecimentos que o levem a adquirir as seguintes competências:

— Relacionação da língua e cultura latinas com a língua e cultura portuguesas.

— Observação reflectida de elementos ocorrentes na cultura ocidental continuadores da cultura greco-latina ou dela divergentes.

— Organização e método de trabalho.

— Reflexão autónoma perante uma situação nova.

— Formulação de juízos de valor devidamente fundamentados.

— Aprendizagem individual e gosto pela pesquisa.

— Cooperação e partilha de conhecimentos e experiências.

— Transferência e inter-relação dos saberes.

— Observação crítica da realidade social e cultural.”

 

E não faltava a referência ao uso das tecnologias, as que havia na altura, evidentemente, com a indicação de páginas da internet para pesquisa, de vídeos e filmes.

Se lermos as orientações para o 11º ano, lá encontraremos, por exemplo:

 

“— A leitura de qualquer texto em latim deve ser precedida de uma integração temática e contextual, que poderá ser feita de formas variadas. Exemplos:

- uma breve introdução pelo professor

- uma pesquisa feita pelo aluno

- a apresentação de um vídeo

- a observação de imagens que esclareçam o referente do texto.

Por outro lado, poderá uma primeira leitura do texto e o levantamento das palavras-chave conduzir à identificação do tema global, suscitando, por sua vez, um trabalho de pesquisa.

Só depois da compreensão global se pode passar à análise do texto e à sua exploração nos aspectos linguístico e cultural, a caminho de uma compreensão mais profunda.

A tradução será o passo seguinte.”

 

Os alunos aprenderão, gostarão de aprender, se tiverem quem os ensine, se lhes for apresentado um curriculum em que as línguas clássicas estejam presentes porque necessárias à sua formação.

 

O que falta, então, nas nossas escolas para que a língua latina seja ensinada e aprendida? Falta um curriculum que a inclua como obrigatória. O jovem não escolhe, por sua livre vontade, algo que a família e a sociedade lhe apresentam como inútil. A maturidade de um aluno que ingressa no 10º ano não é ainda compatível com a construção de um curriculum por sua opção. Tem de haver uma matriz curricular obrigatória e nela tem de caber o estudo das línguas clássicas, o latim e o grego. Faltam também nas nossas escolas professores do quadro que façam ouvir a sua voz, que vençam as vozes contrárias, quando se trata de decidir sobre a abertura de turmas de latim ou de grego. É que, nas últimas décadas, o desinvestimento na área das Humanidades levou a que as escolas ficassem privadas de professores com formação específica em estudos clássicos e, por outro lado, a política de contratações foi deixando para trás licenciados nesta área que, entretanto, tiveram que fazer outras opções de vida.

Estudar as Línguas Clássicas - 3

isa, 25.09.17

Neste início de ano lectivo, cumpre-nos reflectir, uma vez mais, sobre a escola que temos, a escola que queremos, a escola que devíamos ter.

 

Deve a escola preocupar-se, apenas, com a preparação do jovem para o mundo do trabalho? É essa a sua função? Ou cumpre-lhe preparar um cidadão integral, crítico e responsável, capaz de discernir por si nas mais variadas situações, um cidadão que não se deixa manipular por uma sociedade toda virada para o presente imediato, para o utilitário e vantajoso, para o financeiramente lucrativo?

 

O escritor e jornalista espanhol Arturo Pérez-Reverte, numa crónica com o sugestivo título “Demasiado lejos de Troya”, publicada na revista XLSemanal de 24 de Setembro, e que pode ser lida aqui, comenta o estudo das línguas clássicas no seu país, lamentando as sucessivas leis sobre ensino que conduziram ao actual estado de abandono de um conhecimento essencial.

 

No seu pais como no nosso (aliás, em Portugal a situação é muito pior...) o estudo da cultura clássica e das línguas latina e grega está a desaparecer, substituído por disciplinas que, na lógica actual, são mais importantes para o futuro dos jovens. Dá um exemplo, comum entre nós (também para pior...), de um amigo, professor num colégio, que não conseguiu abrir um curso de Cultura Clássica por ter poucos alunos inscritos. E assim, escreve ele:

 

“Significa que um curso inteiro de estudantes, nesse colégio e em centenas deles, acabará o ensino secundário sem ter nem uma remota ideia de quem foram Homero e Virgílio, sem saber o que o nosso mundo deve a Sólon, Clístenes ou Péricles, sem recordar Sócrates ou buscar o caminho para casa com Xenofonte, sem compreender as importantes consequências para a Hispânia da guerra que pôs frente a frente Cipião e Aníbal. Sem poder, jamais, desfrutar da beleza, da felicidade, de uma frase perfeita e absoluta como «Nox atra cava circumvolat umbra».

 

E continua:

 

“Numa sociedade resolvida a suicidar-se culturalmente, aconselham-se os jovens brilhantes a estudar só cursos científicos ou de ciências sociais; aos menos hábeis, humanidades; ... Tal é o triste mapa do nosso futuro. E neste afã disparatado de apagar das aulas todo o inútil, as malfadadas leis e reformas educativas... conseguiram que os alunos que com 16 anos podem optar por Humanidades — a minha geração estudava Latim básico e obrigatório com 11 ou 12 anos —, se encontra então, pela primeira vez, com o Latim, porém descafeinado e de uma simplicidade aterradora. Mas essa opção, ainda por cima, está em competição com outras socialmente mais bem vistas: a científico-tecnológica e a profissional, de modo que as suas possibilidades são mínimas.”

 

“ Para não falar do Grego, claro. Em algumas comunidades, no 1º ano do bachillerato podem, é certo, optar por Grego e Literatura Universal. Mas os jovens não são tontos, e sabem que o Grego é difícil e tornará mais complicados os exames nacionais. Assim, adeus para sempre a Homero e companhia. ... gerações de jovens cidadãos a quem se rouba o direito a uma educação integral; lançados no mundo sem saber, e sem se importarem de saber quem foram Arquimedes, Séneca ou Catilina, nem o que de verdade e na sua origem significam palavras com agonia, democracia ou isonomia.”

 

      Ele que foi repórter de guerra, antes de se dedicar inteiramente à escrita, termina deste modo:

 

“Não esqueço que a primeira vez que vi arder uma cidade, Nicósia em 1974, com 22 anos, levava na memória o canto II da Eneida. E nos gregos armados que se despediam das suas famílias reconheci sem dificuldade Heitor, o do elmo flamejante. E é disso que se trata, no fim de contas. Sem o Latim, sem o Grego, sem aqueles professores que me guiaram através deles, nunca teria podido compreender Tróia e quanto hoje significa e esclarece. Ter-me-ia perdido entre os dardos aqueus, na negra e côncava noite, sem encontrar nunca o caminho de Ítaca ou das costas de Itália. Sem o modo de observar o mundo com que hoje vivo, envelheço e escrevo.”